sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Corpo de Delito

O advogado dos irmãos Naves, Dr. João Alamy Filho, no seu livro "O Caso dos Irmão Naves: o erro judiciário de Araguari", reproduze muitas das "peças" do próprio processo, o mesmo procedimento que adotamos aqui no blog.

Vamos ver hoje uns dos argumentos do Dr. João sobre o corpo de delito. O termo corpo de delito não quer dizer "corpo" no sentido de "cadáver": significa o corpo de evidência, a prova de que um crime realmente aconteceu. No caso dos irmãos Naves, seria o corpo do suposto defunto, ou também seria o dinheiro que sumiu junto com ele, os 90 contos de réis.

A acusação não basta afirmar a existência de indícios veementes. É necessário prová-los. E, 'prova, é a soma dos meios produtores da certeza' (Mittermaier J. Monteiro); 'é a demonstração dos fatos alegados em juízo (Moreira, Planiol, Glasson)' (In Whitaker - O Juri, pág 150)."

E, mais adiante, "A prova da acusação deve ser completa, plena e judicial; do contrário, o réu será absolvido porque a seu favor se presume a inocência (P. Batista, Ribas, Garraud, V. de Castro)' (In Ob. Cit., Pág. 152).

Elemento essencial, a constatação do roubo, pelo desaparecimento do objeto (dinheiro), de que modo, quando e onde foi constatado em todo o processo? Nem a violência praticada pela polícia conseguiu descobrir-lo, porque os RR são inocentes.

Dir-se-ia: há indícios. Mas não são verdadeiros, são criação da polícia, que os forjou. Eles aparecem (admitimos, para argumentar apenas a sua existência) originários da confissão arrancada aos RR, de uma falsa confissão. 'Indício é o fato certo, de existência incontestável' (Whitaker). Qual o fato certo relacionado? Nenhum.

O juiz substituto de Araguari mandou os autos para o juiz de Uberlândia, Dr. Arnaldo Moura, para aceitar ou não a denúncia. O dr. Arnaldo despachou, "Converto o julgamento em diligência para proceder-se ao corpo de delito, direto ou indireto. O exame de corpo de delito, nos crimes que deixam vestígio, é termo essencial do processo."

O caso dos irmãos Naves é famoso porque o aparecimento posterior do "morto" andando e falando não deixou dúvida de que ele não foi assassinado. Porque faltou o corpo de delito, a prova de que o crime aconteceu? Faltou porque o crime não aconteceu mesmo. Porque é essencial? Para evitar casos como o dos irmãos Naves, e evitar casos como os que analisamos neste blog.

Provas diretas e indiretas

O juiz de Uberlândia pediu o corpo de delito "direto ou indireto". Evidências diretas seriam o corpo o suposto falecido, ou o dinheiro dele roubado; indireta seria testemunhas que observaram um ou outro.

No caso Colina do Sol, na caça às bruxas de Catanduva, no caso do Tio Ricardo de Vila Velha, no caso do professor Pablo de Mendes, no caso da escolinha Gente Inocente do Rio de Janeiro, a suposta crime é abuso sexual. A prova direta de abuso seria laudo de exame médica.

Quando uma vítima de estupro é levado imediatamente para o IML, um exame pode não somente constar ato sexual, mas as vezes também pode colher DNA que permite comprovar a identidade do estuprador - ou inocentar um suspeito. Claro que casos de acusação falsa, quando o relacionamento foi consentido. Também existe homicídio em autodefesa. Pelo menos temos um começo para um investigação criminal. Nos casos listados acima estamos falando de crianças, e "consentimento" não entra. Comprovando relacionamento sexual, teríamos a prova do crime, um ponto de partido para procurar o criminoso.

Mas não há, em nenhuma destes casos listados, um laudo de corpo de delito que comprove inequivocamente, que houve relação sexual. Uma entrevista é o começo, o fim, o todo da evidência de crime e prova de autoria. Como no caso dos irmãos Naves, as provas eram, unicamente, as "confissões" arrancados sob tortura.

No caso de Catanduva, os laudos comprovaram a virgindade das meninas que se dizerem estupradas. A prova direta venceu a prova indireta: ninguém foi condenado pelo "estupro" que não houve. No caso Colina do Sol, houve um laudo positivo em que a vítima negava, procurou médico particular especializado (proctólogo) que deu laudo negativo, e quando conversei com o legalista que fez o primeiro laudo, ele não poderia comentar o caso específico, mas disse que casos semelhantes, haveria outras explicações.

E a palavra da vítima?

Já comentamos aqui faz mas de três anos o valor especial da palavra da vítima nestes casos, e também seus limites. A palavra precisa estar "em harmonia com os demais elementos de certeza dos autos". A história da Catanduva, como a de Tio Ricardo, eram simplesmente fantásticas. Se William tivesse levado 61 crianças na garupa do moto ao meio-dia, durante meses, numa cidade pequena, alguém teria visto. Se Ricardo estivesse se vestindo de calcinha e sutiã dento de um colégio movimentado, alguém teria visto.

Vale notar que no caso Colina do Sol, a palavra das vítimas foi "não", e então polícia e promotora decidiram que então não tinha valor. Usaram uma intermediário para retorcer as palavras das supostas vítimas.

Psicólogo, intermediário da verdade

Característica nestes casos é o uso de psicólogos para produzir o resultado que a acusação quiser ouvir. No caso Colina do Sol, a falsa psiquiatra Dra. Heloisa Fischer Meyer assinou laudos afirmando que menores foram abusados - apesar de que eles, com 11 à 16 anos, negaram qualquer abuso. Uma criança afirmou abuso de maneira inconsistente e com mentiras comprovadas. A defesa queria ter um outro psicólogo na sala, e o da acusação não permitia. Interessante que na DCAV do Rio de Janeiro, no caso do creche Gente Inocente, até permitiram advogado de acusação na sala!

Visitei em novembro o Instituto Criminalistica da Polícia Federal. É independente, um delegado de um caso não pode pedir os resultados que sustentam a conclusão que ao que já chegou. O IGP/IC do Rio Grande do Sul é também independente em teoria, e na prática resistiu às pressões que nem a Corregedoria aguentou. Mas no DCAV, os "psicólogos voluntários" são subordinados ao delegado do DCAV! O chefe prende um sujeito na televisão, e o subordinado vai dizer "ora, entrevistei a criança, e negou abuso"? Conversa mais, ora bolas, com umas horas de conversa, uma criança pequena fala o que o entrevistador quer ouvir.

Não tive acesso aos autos do caso do Tio Ricardo, mas ouvi que três das supostas vítimas foram ouvidas na versão local da programa "Depoimento sem Dano", e seus depoimentos ajudaram a defesa. Então? Interromperam os depoimentos das "vitimas" na programa "Depoimento sem Dano"! Há um boato de que uma das mães levou seu filho a cinco (05) psicólogas até ouvir o resultado que queria. Uma opção que a defesa não tem.

Notamos que no caso do Tio Ricardo, a psicóloga Ana Beatriz Fontes Venturim estava inscrita no Conselho Regional de Psicologia somente desde 2010, então tinha de um a dois anos de experiência quando "constatou abuso". A não seguiu a norma da CFP que exige que o suposto abusador seja ouvido. Uma das acusações foi baseado somente numa única entrevista de 40 minutos. O psicólogo em Catanduva, que encontrou 61(!) crianças abusadas, tinha graduação em psicologia, e depois se especializou em ... educação especial. Houve psiquiatras de verdade no caso Colina do Sol, mas foram alimentados com dados falsos, e ainda assim somente concluíram de que "Não é possível, neste exame, determinar a ocorrência de abuso sexua1 ou ato libidinoso". Mas a acusação foi em frente somente com esta "prova".

Voltando ao corpo de delito

Demos uma volta por estes casos, e voltamos ao corpo de delito. O caso dos irmãos Naves ilustra porque o corpo de delito é essencial. O corpo de Benedito Caetano poderia depois de autópsia, ter comprovado o assassinato ou até o morte natural. A descoberta dos 90 contos de reis teria comprovado o roubo. Na falta do corpo de delito, houve uma grande injustiça.

Um atestado psicológica não dá o mesmo grau de certeza de que houve um crime, quanto um cadáver no necrotério perfurado com bala. Um exame médico constatando vestígios de atos libidinosos comprove o crime, e poderia levar ao autor.

Mas a entrevista com uma criança, feita por um psicólogo inexperiente, sem qualificações, sem independência, ou que não segue as normas do Conselho Federal, dá a mesma grau de certeza de que uma confissão arrancada sob tortura. Não é um ponto de partido para a Justiça, mas para a injustiça.


Segue umas anotações sobre o livro "O Caso dos Irmãos Naves".

90 contos de reis

Quanto é, em dinheiro de hoje, os 90 contos de reis que sumiram com o morto-vivo Benedito Caetano? Dr. João Alamy Filho fornece o câmbio de dólar: os 90 contos davam uns US&6.500 em 1937, que seria US$106 mil hoje, conforme este calculador online, equivalente a R$218 mil. Os 90 contos era o que Benedito recebeu vendendo 2047 sacos de arroz (fls 29). Arroz fechou em volta de R$36 o saco dia 21/12/12; 2047 sacos é R$73.728 mil. Benedito comprou um caminhão Ford V-8 em sociedade com seu "assassino" Joaquim, por 16 contos de réis: os 90 contos valia 5,65 Ford. O preço hoje do caminhonete Ford que mais vende é por baixo US$24 mil (o preço brasileira é em grande parte imposto), 5,65 Ford seria US$132.750, ou R$273.465.

O avião fatal

Dr. João Alamy Filho conta (fls 350-351) que

 

Corre como verdade, merecendo credibilidade pela sua origem, a notícia de que ao ser interrogado pelo capitão delegado de polícia, Jorginho Jorge de Souza, se sabia da prisão e condenação dos irmãos Naves, acusados da sua morte, Benedito teria jurado pela vida dos seus filhos que somente viera a saber do fato no momento da sua prisão. Logo depois, deu-se o desastre aviatório, em que morreram sua mulher e filhos.

 

Sendo que acidentes aéreas são um dos assuntos ocasionais aqui, procurei o acidente. O Douglas CD-3 PP-ANH da Transporte Aérea Nacional caiu perto de Palmeiras de Goiás, GO, no 12 de agosto de 1952, matando todos os 21 abordo, inclusive um filho do governador de Goiás. Decolou de Rio Verde, Goias, município vizinho de Jataí onde morava Benedito e sua família.

A próxima acidente aérea brasileira com vítimas era no 14 de outubro de 1952, quando outro Douglas DC-3, PP-AXJ da Aerovias Brasil, caiu em S.Francisco de Paula, RS, município vizinho de Taquara, com 14 mortos.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O caso dos irmãos Naves

A Folha de S. Paulo trouxe ontem um relembrança do caso dos irmãos Naves, que se iniciou faz 75 anos. Já ouvi falar do caso, e sabia que a "vítima do assassinato" reapareceu, vivo. Mas eu não sabia dos motivos econômicos, nem da tortura. Conforme o autor Rubens Naves, primo distante dos irmãos:

 

Os irmãos foram condenados a 16 anos de prisão por um crime que não cometeram. Ao longo de décadas, o caso foi considerado "o maior erro judiciário brasileiro".

Neste momento da história do país, é importante fazer justiça para com o próprio significado do episódio: não se tratou de um mero erro, mas sim de bárbara e deliberada violação de direitos que culminou numa falsa confissão.

 

Depois, Rubens clarifica:

 

Sobre o citado caso dos irmãos Naves, também sabemos atualmente que a família da falsa vítima de homicídio foi cúmplice na montagem da farsa para não ter de arcar com pesadas dívidas financeiras deixadas por ele.

Esse fato indica outro aspecto crucial da questão: a frequente existência de interesses econômicos ligados a violações de direitos humanos que não são investigadas a contento.

 

Raul Cortez e Juca de Oliveira como os irmãos Naves
O caso célebre já rendeu até filme. Este relato detalhado do promotor de Justica do DFT Rogério Schietti Machado Cruz, conta mais, inclusive do morte da toda a família do falso morto Benedito Caetano num acidente de avião, por coincidência outro dos meus interesses.

E o caso Colina do Sol?

O foco da matéria de Rubens Naves é que os motivo financeiros atrás dos abusos da Justiça devem ser também examinadas. Na minha primeira viagem para Taquara, ouvi muito dos fraudes imobiliárias e financeiras que são o modelo de negócios da Colina do Sol, mas errei em achar irrelevantes. Aprendi meu erro, e cheguei na mesma visão destacada pelo Rubens. Não se pode examinar a acusação falso, sem saber o motivo econômico que motivou. No caso dos Neves, os 90 contas de réis levados pelo Benedito; no caso Colina do Sol que as acusadores eram devedores e desafetos dos acusados, e as fraudes de terras. E outros crimes.

Os motivos financeiros nem precisam ser grandes. Benedito sumiu com 90 contas de réis provindos da venda de uma safra de arroz. A Colina do Sol vale como um todo talvez R$2,6 milhões e talvez muito menos; o processo com seus 5000 páginas deveria ter custado mais do que isso.

Ameaças para conseguir acusações

No caso dos irmãos Neves, Dr. Rogério nota que:

 

A perversidade do Tenente Francisco não se limitou aos indiciados. Também as esposas e até mesmo a genitora deles foram covardemente torturadas, inclusive com ameaças de estupro, caso não concordassem em acusar os maridos e filhos.

 

No caso Colina do Sol, para conseguir representações contra quem a polícia tinha escolhida para acusar, o delegado Juliano Brasil Ferreira abusou do seu poder de indiciar, e a Dra. Natália Cagliari, Promotora de Justiça da comarca de Taquara, abusou do seu pode de denunciar, que usou para coagir.

Os métodos são diferentes, mas a ideologia, igual.

A tortura é relativa?

Dr. Rogério dá detalhes da tortura sofrido pelos irmãos Naves, que excedem em muito os relatos dos filhos de Isaías Moreira. Porém, "relativizar" a tortura, dizer que "sofrerem pouco", é como relativizar o estupro, colocando a culpa não nos criminais, mas nas vítimas que "deveriam ter resistido mais". É indiscutível que a família de Isaías foram mantidos sete horas na delegacia, até que assinaram acusações, que renegaram no dia seguinte. A polícia não precisaria sete horas para ouvir o que a testemunha quer dizer. Demora assim para arrancar o que a polícia quer ouvir.

Ainda, os filhos de Isaías contataram que sofrerem tortura e ameaças para acusar. Já comparamos a "palavra da vítima" em casos de abuso e de tortura, encontrando a mesma característica: algo que acontece sem testemunhas, a não ser vítima e criminoso, portanto, a mesma regra deve ser aplicada, que a verdade da palavra da vítima é presumida.

Bárbara e deliberada violação de direitos

Setenta anos mudaram os métodos da polícia, da promotoria, e da Justiça. A tortura é mais "amena". Em vez da confissão extorquida, reina a psiquiatria fajuta e as evidências plantadas, e escuta telefônica dos acusados e de defensores dentro e fora do âmbito jurídica. Mas a figura do delegada que coloca a condenação como prioridade continua conosco, que nem da promotor que ou por ser mal ou por ser ruim, emprega seus poderes não para promover a Justiça para para promover a condenação.

Sr. Rubens é correto em examinar os motivos não somente dos acusados, mas dos acusadores também.

Mas acredito sr. Rubens Naves erra em indicar as comissões da verdade como quem deveria presta atenção às lições do caso dos irmãos Naves, procurando os grandes interesses econômicos atrás dos abusos da ditadura.

Erra em focar interesses grandes. É lastimável o que pessoas estão capazes de fazer por interesses mesquinhas: uma safra de arroz, um campo de nudismo deficitário, trinta moedas de prata.

Ele erra por focar os crimes do passado em vez de focar os crimes atuais, como do caso Colina do Sol. É mais difícil defender os acusados do "crime imperdoável" de hoje, do que os acusados dos crimes já anistiados de ontem.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Capital e provincia

No curso sobre "O papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo", que cobri semana passada no Superior Tribunal Militar em Brasília, foi preciso ouvir opiniões sensatas - que as vezes discordavam frontalmente; reexaminar o que sabia sobre a criminalização de acidentes aéreas - e aprender que a questão não era maniqueísta; e assistir a tentativa de criar não somente regulamentos específicos para reconciliar investigações policiais e investigações de seguranças, mas de construir teorias de Justiça que dão precedência para a preservação de vida, apesar da garantia constitucional da "inafastabilidade do Poder Judiciário".

Não sou formado nem em direito nem em segurança aérea, ainda que acompanhado o caso do Gol 1907 aprendi muito sobre a segunda disciplina, e acompanhando o caso Colina do Sol, aprendi muito da primeira, especialmente do parte mais mesquinha: agora sei que "a peça vestibular" é somente uma maneira desnecessariamente complicada de dizer "denúncia". Talvez porque o curso incluiu alunos das duas áreas, eu não me afogava nem numa, nem outra. As águas sempre davam pé, e os palestrantes estavam tentando explicar o complicado, e não complicar o simples.

Minha formação é em filosofia. As vezes o curso invadiu o campo de filosofia, como quando discursava sobre os fins diferentes de um relatório de segurança e um inquérito policial, e porque as recomendações do primeiro não podem ser usados pela Justiça como se fossem as conclusões do segundo. Minha impressão leigo tanta da matéria de direito apresentada quanto da segurança, eram de boa qualidade. De filosofia não falou como leigo, então posso dá mais de uma impressão: era bom, mesmo.

Quem tiver grande interesse no assunto (e todos que voam devem ter interesse), pode ler mais no site da CENIPA ou no do CEJUM - Centro de Estudos Judiciários da Justiça Militar da União. Recomendo também para quem tiver interesse no bom direito, para quem tiver um interesse na construção de entendimento jurídico e da lei, para quem tem um interesse que vai além de, "Há algo aqui que serve para que meu lado ganhar a causa?"

Lições para outros casos

Que lições esta experiência trouxe para o caso Colina do Sol, e os outros casos aqui examinados? Uma lição é que as dificuldades que tratamento que os acusados receberem do Fórum de Taquara eram resultado de, para falar curto e grosso, justiça falha.

Uma afirmação destas, obviamente, não pode ficar assim, sem mais nada. Dever ser ilustrada com exemplos específicos, da mesma maneira que o curso de CEJUM sempre partiu de casos específicos, ou passava por eles, ou nelas chegava. Mãos à obra, então.

Constituição está acima de estatuto de clube

Fritz Louderback, Barbara Anner, e sua família foram atormentados pela corja da Colina do Sol, pela aplicação seletiva do "estatuto" do clube. Seu direito de receber visitas na sua casa foi cercado; como foi o direito de seus funcionários de trabalhar; como de desfrutar das instalações do condomínio, para qual foram sempre cobrados. A mãe de Cristiano, Nedy e Fátima Pinheiro Fedrigo, morreu do estresse do caso, causado mais pela corja, mas com o apoio ou a anuência do Fórum. Cristiano passou de morar com Fritz e Barbara depois da morta da sua mãe, e foi posto fora do seu lar por voto do clube. Para cada reclamação ao Fórum de Taquara ou à polícia, o Fórum teve sempre a mesma resposta: "é um clube, e tem um estatuto".

Veio esta semana uma clarificação do Tribunal de Justiça de São Paulo, estampada nas páginas da Folha de S. Paulo:

 

No recurso à decisão de fevereiro, o clube argumentou que não cabia ao Estado se intrometer em assuntos de uma entidade privada.

O relator do caso, desembargador Fortes Barbosa, discordou do argumento e disse que o Estado deve defender os direitos individuais.

"A ordem jurídico constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República."
 

O acórdão desde caso 0132644-15.2011.8.26.0100 cita, especificamente, o STF:

Em primeiro lugar, já decidiu o E. Supremo Tribunal Federal que os direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados:
“As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. (...) A ordem jurídicoconstitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais” (STF-2ª Turma, RE 201819- RJ, Relatora Min. Ellen Gracie, Relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005).

Vimos, então, que não estamos lidando com uma situação de jurisprudência difícil, em que a Justiça da primeira instância pode enxergar nos fatos do caso, uma escolha difícil. Seguindo precedente constitucional do STF, a Justiça da primeira e segunda instâncias de São Paulo julgaram que o "centenário Club Athletico Paulistano, frequentado pela elite da capital paulista" não está acima da Constituição.

É tão difícil assim julgar que um clubinho, frequentado por um condenado por sequestro, em cujos negócios os juízes do próprio comarca já enxergaram concilium fraudis, está também sujeito a lei máxima do Brasil? Não é que o Fórum de Taquara fez em casos difíceis decisões que não me agradaram. Não, em casos fáceis, o Fórum de Taquara fez decisões erradas.

A inafastabilidade do Poder Judiciário

Uma das experiências inacreditáveis que tive no Fórum de Taquara foi ouvir o então presidente da Colina do Sol, e devedor de Fritz Louderback, contar para uma juíza que a Colina tinha "processos disciplinares confidenciais", e ela aceitou esta "confidencial". Quando alguém reclama que o condomínio abusou do seu poder, a examinação pelo Judiciário é essencial. Um juiz americano teria reagido com brio se alguém afirmasse na sua cara que seus papeis eram "confidencias". Esta de Taquara aceitou sem um pio.

O curso de Brasília procurou uma maneira de respeitar a confidencialidade assegurada pela Convenção de Chicago, enquanto o debate na Escola Superior do Ministério Público em 27/06/12 (que não comentei aqui) seguiu outro rumo. No evento de junho, ouvi o ex-procurador-geral de São Paulo, Luiz Antonio Marrey, dizer que nem um tratado ao qual o Brasil é signatário estaria acima da prerrogativa constitucional da promotoria de pedir qualquer documento que quiser. Mas em Taquara, a Justiça ficou perplexa ente a Constituição e um tratado? Não, um nudista diz que seus papeis eram "confidenciais", e a Justiça faz obsequia. De novo, não uma decisão difícil que me desagradou. Uma decisão fácil, e errada.

A isenção da Justiça

Um atitude que norteou todos que ouvi em Brasília, não somente juízes, mas também promotores e ate a Polícia Federal, foi que a Justiça deve condenar os culpados - mas também, livrar os inocentes. O juiz federal Marcelo Honorato lamentou vários casos em que o mau usou de relatórios de segurança aérea serviu para condenar, criminalmente ou civilmente, alguém que não tinha relação com os fatores que deram no acidente. Vários peritos do Instituto Criminalista da Polícia Federal (que recomendo como turismo da primeira linha, se você conseguir entrar com um grupo de juízes federais) falaram de casos ou circunstâncias em que seus exames inocentaram um acusado. Um fator a ser considerado, no uso dos laudos de CENIPA num processo criminal, é que um acusado simplesmente não tem como bancar uma perícia deste porte. Vai ficar sem dados técnicos, então?

Enquanto isso, houve em Taquara um esforço ferrenho para afastar da defesa o uso das evidências. O Moleque que Mente® deu um relato de abuso rebuscada de detalhes - detalhes inconsistentes, que brigam com o relato da outra "vitima" do orfanato (que nada relatou na Justiça que, ainda se for verdade, seria crime), que brigam com os relatos documentais, como os registros de entrada e saída de crianças do orfanato. Como exaustivamente comprovada aqui.

Enquanto isso, a máquina fotográfica de Dr. André tem fotos, com datas gravadas, das visitas da fim de semana no programa "Família Acolhedora", e duas órgãos policiais independentes gravaram as fotos em CDs (e atestaram que nada há nelas que seja crime). Ver as fotos na ordem da data, para ver o que realmente aconteceu? Que evidência completa e objetiva! Que ideia mais simples de executar! Esbarra na recusa Maquiavélica da 2ª de Taquara, ou pelo menos da assistente da juíza, Dra. Renata, de não permitir que a defesa examinasse as evidências, nem se for dentro do cartório, rodeada de restrições. Nem foi possível colher os números de série dos CDs. Mas a acusação pede, e leva para examinar na Promotoria ao seu lazer.

Num caso com a acusação de pornografia, aceso às evidências poder ser difícil. Neste caso não, pois houve laudos do IGP-IC garantindo que pornografia não havia. Quando a defesa se desdobrou para trabalhar sob restrições excessivas, a resposta da Justiça ou pela menos da assessora da juíza foi de inventar novas restrições: "o despacho permitindo examinar as evidência vale somente para olhar uma vez, doutor".

Negar acesso às evidências é cerceamento de defesa. O Fórum de Taquara não estava tentando achar uma solução para uma situação difícil. Estava tentando criar dificuldades para a defesa, numa situação fácil.

Punição de inocentes

Enquanto ouvi de todas em Brasília a preocupação de que inocentes não devem ser penalizadas para o que não fizerem, a preocupação em Taquara parece outro. Cinco anos, mais de 70 testemunhas e mais de 5000 folha de processo não produziram nada que poderia embasar uma condenação. Mas se os acusados não podem ser punidos pelo resultado do processo, podem ser punidos pelo próprio procedimento. Digam nos Estados Unidos que "A Justiça atrasada é a Justiça negada", mas atrasar parece a meta dos operadores de direito de Taquara. Cada dia de demora é mais um flagelo nos inocentes falsamente acusados, e traz mais perto a impunidade dos seus devedores e desafetos, autores das falsas acusações.

As crianças, que estavam na escola, estão todas de volta nas pedreiras. Quatro pessoas morrerem - dois dos acusados, a mãe de Cristiano, e o americano Wayne, assassinado na sua cabana na Colina do Sol, seu inventário não feito depois de 5 anos e seus bens nas mãos da corja. Outras não estão bem. Felizmente o crime de tortura dos filhos de Isaías Moreira na delegacia não prescreve, o equipe de delegado Juliano Brasil Ferreira ainda pode responder por isso. Mas muitos dos outros culpados podem escapar, devido aos atrasos tramados pelo MP e pelo Fórum. O assassinato de Wayne também demora para prescrever.

Sonhos

Hoje o jornal traz na capa a morte de Oscar Niemeyer. Quinta-feira a noite, depois do curso, sentei por uma hora no Biblioteca Nacional para organizar minhas notas, mas ficou mais vendo o pôr-do-sol sobre o domo do Museu Nacional, a Esplanada dos Ministérios e o Congresso. É bela. A viagem a Brasília me deu ainda esta oportunidade de ver outra vez o maior obra de Oscar Niemeyer, antes da despedida do seu criador.

Na capa da Folha, há uma citação do arquiteto, "Quando cheguei lá a terra era agreste. Tomávamos caipirinha, ríamos, todos juntos, operários e engenheiros; dava a sensação de que o mundo seria melhor. Quando inaugurou, veio a muralha separando pobres e ricos, e Brasília virou uma cidade como os outros."

A Brasília que vi nesta viagem foi de gente de boa vontade e grande capacidade, sentados juntos, tentando desmontar muros. O problema que atacaram existe em outros lugares, mas o esforço brasileiro é inédito, um exemplo para o mundo, como foi a arquitetura do Capital.

A obra social de Fritz Louderback em Morro da Pedra também foi de quebrar muros. Aprendi semana passada em Brasília de juízes e promotores federais, mas em Morro da Pedra também tirei lições importantes. Ser analfabeto não quer dizer burro. Conheci bastante gente para quem faltava não capacidade mas oportunidade. Sofrerem não com limitações próprias, mas das limitações do Estado.

Niemeyer disse que "A gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem." Brasília aconteceu. O que vi no curso no Superior Tribunal Militar, foi um outro sonho, acontecendo.

Acusações falsas como do caso Colina do Sol são epidêmicas. O problema é difícil. Mas a criminalização das investigações de acidentes aéreas também é difícil, e nem por isso os juristas e especialistas de segurança do Brasil ficaram sentados aguardando uma solução aparecer de outro lugar.

Continuamos a luta, sabendo que as vezes os sonhos se realizam, as vezes os trabalhos rendem frutas. É preciso trabalhar para que os sonhos acontecem. E foi bom ver que a Justiça existe, sim, no Brasil, que o sonho é alcançável.