quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Capital e provincia

No curso sobre "O papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo", que cobri semana passada no Superior Tribunal Militar em Brasília, foi preciso ouvir opiniões sensatas - que as vezes discordavam frontalmente; reexaminar o que sabia sobre a criminalização de acidentes aéreas - e aprender que a questão não era maniqueísta; e assistir a tentativa de criar não somente regulamentos específicos para reconciliar investigações policiais e investigações de seguranças, mas de construir teorias de Justiça que dão precedência para a preservação de vida, apesar da garantia constitucional da "inafastabilidade do Poder Judiciário".

Não sou formado nem em direito nem em segurança aérea, ainda que acompanhado o caso do Gol 1907 aprendi muito sobre a segunda disciplina, e acompanhando o caso Colina do Sol, aprendi muito da primeira, especialmente do parte mais mesquinha: agora sei que "a peça vestibular" é somente uma maneira desnecessariamente complicada de dizer "denúncia". Talvez porque o curso incluiu alunos das duas áreas, eu não me afogava nem numa, nem outra. As águas sempre davam pé, e os palestrantes estavam tentando explicar o complicado, e não complicar o simples.

Minha formação é em filosofia. As vezes o curso invadiu o campo de filosofia, como quando discursava sobre os fins diferentes de um relatório de segurança e um inquérito policial, e porque as recomendações do primeiro não podem ser usados pela Justiça como se fossem as conclusões do segundo. Minha impressão leigo tanta da matéria de direito apresentada quanto da segurança, eram de boa qualidade. De filosofia não falou como leigo, então posso dá mais de uma impressão: era bom, mesmo.

Quem tiver grande interesse no assunto (e todos que voam devem ter interesse), pode ler mais no site da CENIPA ou no do CEJUM - Centro de Estudos Judiciários da Justiça Militar da União. Recomendo também para quem tiver interesse no bom direito, para quem tiver um interesse na construção de entendimento jurídico e da lei, para quem tem um interesse que vai além de, "Há algo aqui que serve para que meu lado ganhar a causa?"

Lições para outros casos

Que lições esta experiência trouxe para o caso Colina do Sol, e os outros casos aqui examinados? Uma lição é que as dificuldades que tratamento que os acusados receberem do Fórum de Taquara eram resultado de, para falar curto e grosso, justiça falha.

Uma afirmação destas, obviamente, não pode ficar assim, sem mais nada. Dever ser ilustrada com exemplos específicos, da mesma maneira que o curso de CEJUM sempre partiu de casos específicos, ou passava por eles, ou nelas chegava. Mãos à obra, então.

Constituição está acima de estatuto de clube

Fritz Louderback, Barbara Anner, e sua família foram atormentados pela corja da Colina do Sol, pela aplicação seletiva do "estatuto" do clube. Seu direito de receber visitas na sua casa foi cercado; como foi o direito de seus funcionários de trabalhar; como de desfrutar das instalações do condomínio, para qual foram sempre cobrados. A mãe de Cristiano, Nedy e Fátima Pinheiro Fedrigo, morreu do estresse do caso, causado mais pela corja, mas com o apoio ou a anuência do Fórum. Cristiano passou de morar com Fritz e Barbara depois da morta da sua mãe, e foi posto fora do seu lar por voto do clube. Para cada reclamação ao Fórum de Taquara ou à polícia, o Fórum teve sempre a mesma resposta: "é um clube, e tem um estatuto".

Veio esta semana uma clarificação do Tribunal de Justiça de São Paulo, estampada nas páginas da Folha de S. Paulo:

 

No recurso à decisão de fevereiro, o clube argumentou que não cabia ao Estado se intrometer em assuntos de uma entidade privada.

O relator do caso, desembargador Fortes Barbosa, discordou do argumento e disse que o Estado deve defender os direitos individuais.

"A ordem jurídico constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República."
 

O acórdão desde caso 0132644-15.2011.8.26.0100 cita, especificamente, o STF:

Em primeiro lugar, já decidiu o E. Supremo Tribunal Federal que os direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados:
“As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. (...) A ordem jurídicoconstitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais” (STF-2ª Turma, RE 201819- RJ, Relatora Min. Ellen Gracie, Relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005).

Vimos, então, que não estamos lidando com uma situação de jurisprudência difícil, em que a Justiça da primeira instância pode enxergar nos fatos do caso, uma escolha difícil. Seguindo precedente constitucional do STF, a Justiça da primeira e segunda instâncias de São Paulo julgaram que o "centenário Club Athletico Paulistano, frequentado pela elite da capital paulista" não está acima da Constituição.

É tão difícil assim julgar que um clubinho, frequentado por um condenado por sequestro, em cujos negócios os juízes do próprio comarca já enxergaram concilium fraudis, está também sujeito a lei máxima do Brasil? Não é que o Fórum de Taquara fez em casos difíceis decisões que não me agradaram. Não, em casos fáceis, o Fórum de Taquara fez decisões erradas.

A inafastabilidade do Poder Judiciário

Uma das experiências inacreditáveis que tive no Fórum de Taquara foi ouvir o então presidente da Colina do Sol, e devedor de Fritz Louderback, contar para uma juíza que a Colina tinha "processos disciplinares confidenciais", e ela aceitou esta "confidencial". Quando alguém reclama que o condomínio abusou do seu poder, a examinação pelo Judiciário é essencial. Um juiz americano teria reagido com brio se alguém afirmasse na sua cara que seus papeis eram "confidencias". Esta de Taquara aceitou sem um pio.

O curso de Brasília procurou uma maneira de respeitar a confidencialidade assegurada pela Convenção de Chicago, enquanto o debate na Escola Superior do Ministério Público em 27/06/12 (que não comentei aqui) seguiu outro rumo. No evento de junho, ouvi o ex-procurador-geral de São Paulo, Luiz Antonio Marrey, dizer que nem um tratado ao qual o Brasil é signatário estaria acima da prerrogativa constitucional da promotoria de pedir qualquer documento que quiser. Mas em Taquara, a Justiça ficou perplexa ente a Constituição e um tratado? Não, um nudista diz que seus papeis eram "confidenciais", e a Justiça faz obsequia. De novo, não uma decisão difícil que me desagradou. Uma decisão fácil, e errada.

A isenção da Justiça

Um atitude que norteou todos que ouvi em Brasília, não somente juízes, mas também promotores e ate a Polícia Federal, foi que a Justiça deve condenar os culpados - mas também, livrar os inocentes. O juiz federal Marcelo Honorato lamentou vários casos em que o mau usou de relatórios de segurança aérea serviu para condenar, criminalmente ou civilmente, alguém que não tinha relação com os fatores que deram no acidente. Vários peritos do Instituto Criminalista da Polícia Federal (que recomendo como turismo da primeira linha, se você conseguir entrar com um grupo de juízes federais) falaram de casos ou circunstâncias em que seus exames inocentaram um acusado. Um fator a ser considerado, no uso dos laudos de CENIPA num processo criminal, é que um acusado simplesmente não tem como bancar uma perícia deste porte. Vai ficar sem dados técnicos, então?

Enquanto isso, houve em Taquara um esforço ferrenho para afastar da defesa o uso das evidências. O Moleque que Mente® deu um relato de abuso rebuscada de detalhes - detalhes inconsistentes, que brigam com o relato da outra "vitima" do orfanato (que nada relatou na Justiça que, ainda se for verdade, seria crime), que brigam com os relatos documentais, como os registros de entrada e saída de crianças do orfanato. Como exaustivamente comprovada aqui.

Enquanto isso, a máquina fotográfica de Dr. André tem fotos, com datas gravadas, das visitas da fim de semana no programa "Família Acolhedora", e duas órgãos policiais independentes gravaram as fotos em CDs (e atestaram que nada há nelas que seja crime). Ver as fotos na ordem da data, para ver o que realmente aconteceu? Que evidência completa e objetiva! Que ideia mais simples de executar! Esbarra na recusa Maquiavélica da 2ª de Taquara, ou pelo menos da assistente da juíza, Dra. Renata, de não permitir que a defesa examinasse as evidências, nem se for dentro do cartório, rodeada de restrições. Nem foi possível colher os números de série dos CDs. Mas a acusação pede, e leva para examinar na Promotoria ao seu lazer.

Num caso com a acusação de pornografia, aceso às evidências poder ser difícil. Neste caso não, pois houve laudos do IGP-IC garantindo que pornografia não havia. Quando a defesa se desdobrou para trabalhar sob restrições excessivas, a resposta da Justiça ou pela menos da assessora da juíza foi de inventar novas restrições: "o despacho permitindo examinar as evidência vale somente para olhar uma vez, doutor".

Negar acesso às evidências é cerceamento de defesa. O Fórum de Taquara não estava tentando achar uma solução para uma situação difícil. Estava tentando criar dificuldades para a defesa, numa situação fácil.

Punição de inocentes

Enquanto ouvi de todas em Brasília a preocupação de que inocentes não devem ser penalizadas para o que não fizerem, a preocupação em Taquara parece outro. Cinco anos, mais de 70 testemunhas e mais de 5000 folha de processo não produziram nada que poderia embasar uma condenação. Mas se os acusados não podem ser punidos pelo resultado do processo, podem ser punidos pelo próprio procedimento. Digam nos Estados Unidos que "A Justiça atrasada é a Justiça negada", mas atrasar parece a meta dos operadores de direito de Taquara. Cada dia de demora é mais um flagelo nos inocentes falsamente acusados, e traz mais perto a impunidade dos seus devedores e desafetos, autores das falsas acusações.

As crianças, que estavam na escola, estão todas de volta nas pedreiras. Quatro pessoas morrerem - dois dos acusados, a mãe de Cristiano, e o americano Wayne, assassinado na sua cabana na Colina do Sol, seu inventário não feito depois de 5 anos e seus bens nas mãos da corja. Outras não estão bem. Felizmente o crime de tortura dos filhos de Isaías Moreira na delegacia não prescreve, o equipe de delegado Juliano Brasil Ferreira ainda pode responder por isso. Mas muitos dos outros culpados podem escapar, devido aos atrasos tramados pelo MP e pelo Fórum. O assassinato de Wayne também demora para prescrever.

Sonhos

Hoje o jornal traz na capa a morte de Oscar Niemeyer. Quinta-feira a noite, depois do curso, sentei por uma hora no Biblioteca Nacional para organizar minhas notas, mas ficou mais vendo o pôr-do-sol sobre o domo do Museu Nacional, a Esplanada dos Ministérios e o Congresso. É bela. A viagem a Brasília me deu ainda esta oportunidade de ver outra vez o maior obra de Oscar Niemeyer, antes da despedida do seu criador.

Na capa da Folha, há uma citação do arquiteto, "Quando cheguei lá a terra era agreste. Tomávamos caipirinha, ríamos, todos juntos, operários e engenheiros; dava a sensação de que o mundo seria melhor. Quando inaugurou, veio a muralha separando pobres e ricos, e Brasília virou uma cidade como os outros."

A Brasília que vi nesta viagem foi de gente de boa vontade e grande capacidade, sentados juntos, tentando desmontar muros. O problema que atacaram existe em outros lugares, mas o esforço brasileiro é inédito, um exemplo para o mundo, como foi a arquitetura do Capital.

A obra social de Fritz Louderback em Morro da Pedra também foi de quebrar muros. Aprendi semana passada em Brasília de juízes e promotores federais, mas em Morro da Pedra também tirei lições importantes. Ser analfabeto não quer dizer burro. Conheci bastante gente para quem faltava não capacidade mas oportunidade. Sofrerem não com limitações próprias, mas das limitações do Estado.

Niemeyer disse que "A gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem." Brasília aconteceu. O que vi no curso no Superior Tribunal Militar, foi um outro sonho, acontecendo.

Acusações falsas como do caso Colina do Sol são epidêmicas. O problema é difícil. Mas a criminalização das investigações de acidentes aéreas também é difícil, e nem por isso os juristas e especialistas de segurança do Brasil ficaram sentados aguardando uma solução aparecer de outro lugar.

Continuamos a luta, sabendo que as vezes os sonhos se realizam, as vezes os trabalhos rendem frutas. É preciso trabalhar para que os sonhos acontecem. E foi bom ver que a Justiça existe, sim, no Brasil, que o sonho é alcançável.

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