quarta-feira, 25 de julho de 2012

Calunia e difamação em Vila Velha

Foto: Juniorzzi via Wikipedia

Calunia, injúria e difamação são crimes distintas, e a distinção pode ser ilustrada por acusações trocados em dois grupos de Facebook, no caso do professor Ricardo de Vila Velha, preso já faz mas de quatro meses baseado em acusações - e nenhuma prova - de abuso contra alunos de um colégio particular. O grupo Eu acredito no "Tio Ricardo" está a favor do rapaz, e o grupo Nos Acreditamos nas Crianças, é contra. O primeiro grupo noticia que um dos pais acusadores já foi condenado por estelionato, e o segundo aponta que Ricardo quando mais jovem foi processado por ter se envolvido em brigas - processos em que não houve condenação.

As duas acusações do passado não são equivalentes. Surpreendentemente, o jornalista de SBT que fez bons reportagens no caso, no seu blog as trata como iguais. Um delegado, que pela função é formado em direito, disse que a acusação de briga poderia espalhar, pois "está num site público". Os dois são errados. Enquanto não sou advogado, assisti o curso sobre a Lei da Imprensa organizado na Associação Paulista de Magistrados, e apreendi como as distinções entre calunia, injúria e difamação exigem tratamento diferente.

No grupo Nos acreditamos nas crianças, recentemente ainda citaram um caso de outro professor de educação física, acusado de abuso já faz quatro anos.

A exceção de verdade

Crimes são atos contra sociedade. Acusar alguém falsamente de um crime, é calunia. Na calunia há a exceção de verdade - se você pode provar que alguém cometeu mesmo um crime, pode dizer. Não é crime informar que alguém cometeu crime. Pode até ser notícia, o uso do direto de informar.

Uma sentença condenatória irrecorrível, é considerada prova de crime. Então, podem publicar o nome do pai condenado por estelionato, e os detalhes do seu crime. A exceção de verdade permite: não é calunia, mas notícia.

Ser acusado de crime, não é crime

Porém, dizer que alguém "já foi acusado", ou "já respondeu processo", é difamação. Ser acusado, não é crime. Ser processado, não e crime. Cometer crime é crime, é podendo provar, pode dizer.

Acusar alguém de algo que não seja crime, é difamação, e não há a exceção de verdade em difamação. Se for dizer algo que pega mal, que não é de interesse pública, "é verdade" não é desculpa. Falando mal dos outros continua sendo crime.

Pelos informações que tenho, então, a condenação anterior do pai acusador por estelionato, pode ser divulgado, sim. Cometeu crime, há prova, pode divulgar isso.

Divulgar que professor Ricardo foi processado, mas não condenado, não pode. É difamação. Divulgar isso é crime.

O interesse público

Ainda, há o interesse público, motivo que as vezes permite que a imprensa divulga coisa que, em outro contexto, seria difamação.

Um exemplo neste blog, que focaliza o caso Colina do Sol, é que naquele caso também houve falta total de evidência física, e ainda, todas as crianças (menos uma, que mentiu sobre muita outra coisa) negaram vigorosamente, na Justiça, em frente do Fórum em manifestação público, no cartório depois de alcançar 18 anos, de que houve qualquer crime. As acusações vierem somente de certos sócios da Colina do Sol, e estes deviam dinheiro para quem acusavam, e pararam de pagar uma vez que suas acusações colocaram seu credor na cadeia.

Dever dinheiro não é crime. Divulgar que alguém é devedor, sem mais nada, seria difamação. Mas neste caso específico, quando devedor acusava credor e quatro pessoas ficaram 13 meses na cadeia, há um interesse público grande que se sobreponha a privacidade dos acusadores.

Aqui vimos o erro do delegado. Os cartórios, e os sites dos Tribunais de Justiça, estão cheios de nomes de pessoas acusadas, e até de gente condenada em assuntos civis que não são crime. Nem por isso pode ficar espalhando por aí somente porque "está num site público."

O que seria o interesse público das acusações mútuas neste caso? Professor Ricardo se metia em brigas quando mais jovem. Era o agressor, ou o agredido? Sem detalhes, não sabemos dizer. É de interesse pública? Tem a ver com o presente caso? Certas acusações, vamos dizer, dirigir acima do limite de velocidade, seriam obviamente irrelevantes. Se meter em brigas? O psicologia pop diz que quem tenta seduzir criança tem medo de se relacionar com gente da sua própria idade. Sem dar crédito demais a teorias psicológicas, a reação imediata é que quem se mete em briga pode ter falta de juízo, mas falta de coragem de se relacionar com seus comparsas, não.

Estelionato? Temos acusações sem provas. Palavras, somente palavras, vindo de crianças facilmente manipuláveis, e dizendo absurdas, como as crianças esperando em fila para serem abusadas. Um dos autores destas palavras já mentiu no passado para prejudicar os outros. E relevante? É óbvio que é relevante.

Legalmente nem seria preciso mostrar a interesse pública, pois a exceção de verdade, permite que o crime do acusador seja divulgado. A ética imponha limites mais rigorosas, mais ainda sob esta ótica, a credibilidade do acusador é de essência, e seu passado é pertinente e até imprescindível para avaliar o caso.

O repórter de SBT, que fez um bom trabalho cavando os fatos do caso, errou em achar as duas acusações - uma irrelevante e arquivada, e outra pertinente e que resultou em condenação - como equivalentes. Não são.

A tendência da imprensa brasileira é de divulgar qualquer acusações contra o acusado, tão ténue antiga ou irrelevante que seja, e esconder qualquer coisa contra o acusado, tão pertinente, recente e comprovada que for.

Não há base por isso nem na lei nem no bom senso. É uma prática ruim, mas ninguém que assiste uma programa policial pode acreditar que a imprensa seja isenta e equilibrada.

E o outro professor acusado faz quatro anos?

Não encontro hoje a postagem no grupo "Nos acreditamos nas crianças" sobre o professor de educação física preso faz quatro anos no interior de São Paulo sob acusação semelhante. Pode ser que os moderadores apagaram, como obviamente deveriam ter apagado.

Porque deveriam ter apagado? Porque a Justiça existe. Num processo, há o contraditório, a oportunidade para que tanta a acusação quanto a defesa apresentarem seus argumentos. O juiz pesa os argumentos, as evidências, a credibilidade das testemunhas, e dá sua sentença, que pode ser tanto inocente quanto culpado.

No momento da acusação nos holofotes, a imprensa nunca dá peso ao que o acusada fala. Ele está num enorme desvantagem: ele conhece somente a verdade, e muitas vezes nem conhece as acusações. Seu advogado normalmente é alguém que também não o conhece, e com grande frequência, a polícia nega acesso aos autos. A imprensa também dá muito pesa as declarações em "off" da polícia, e tem um desgosto enorme para confessar, "O que falamos ontem, é falso."

Depois de quatro anos, houve uma denúncia, ou talvez nem foi, pois as evidências na realidade tendem a ser bem menos contundentes do que no TV. Se houver uma denúncia, é bem possível que o acusado foi inocentado. As "provas" poderiam ter sido plantadas, como tudo indica que foram no caso Colina do Sol. As acusações poderiam ter se mostrado inconsistentes, contraditórios entre se, em contradição com fatos objectivos.

Houve uma acusação? Houve. Depois de quatro anos, haverá um desfecho. Se o outro professor foi condenado em sentença irrecorrível (que não é possível, as apelações não se esgotam em quatro anos) poderiam citar o caso.

Mas sem saber do julgamento, sem pesquisar o resultado, levantar depois de quatro anos o nome de um homem dizendo que "foi acusado", não é somente difamação. É infâmia. Levaria trabalho pesquisar? Coitado! E se alguém for acusar você de algo de que você foi inocentado, e oferece a desculpa, "Eu tinha preguiça de procurar a sentença", como você responderia?

A palavra de Deus

Nos dois grupos, é constante as citações de Deus. Bom lembrar a oitava mandamento, "Não levantaras falsa testemunha contra o teu próximo".

Acusar um inocente não é somente crime, é também pecado.

Defender alguém, até um culpado, não é nem crime, nem pecado.