quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Catanduva e Massachusetts

Este texto, da minha autoria, saiu 26/01/2010 no blog www.passandoalimpo.com do jornalista Arthur Godoy Júnior, que acompanha a vida da cidade de Catanduva, onde acontece outro caça às bruxas. É escrito para leitores familiarizados com os fatos - ou pelo menos as acusações veiculados na mídia - no caso.

Semana passada em Massachusetts, uma ex-promotora perdeu uma eleição especial para o Senado americano, em parte devido ao seu papel no caso notório de Fells Acres, o pior desvio de Justiça naquele estado desde os processos dos bruxos de Salem, três seculos antes.

Mas o que interessa aqui não é os efeitos da eleição em Washington. É que a sentença da meritíssima juíza Sueli Juarez Alonso, na “rede de pedofilia” de Catanduva, assusta na sua semelhança com o condenação de Fells Acres. E com as condenações das bruxas de Salem.

Alegações impossíveis, falta total de evidências físicas, interrogações por psicólogos já convencidos que houve crime, foram parte da onda de supostos casos de abuso que varreu os Estados Unidos nos anos 80-90. Este eleição provocou retrospectivas destes casos, notavelmente de Dorothy Rabinowitz no Wall Street Jornal, e no Psychology Today, este último disponível traduzindo aqui.

Sem evidência objetiva

Tanto em Catanduva quanto em Massachusetts, não há nenhuma evidência médica ou objetiva de que qualquer abuso aconteceu. Em suas quatorze páginas, a sentença da Dra. Sueli não cita nenhum laudo médico, nenhuma prova física, nenhuma evidência objectiva que estes crimes acontecerem.

O que ela cita é a testemunha e os reconhecimentos de crianças. Houve somente isso em Fells Acres, e em Salem.

Uma criança no caso Fells Acres contou que foi sodomizado com uma faca de açougueiro de 30cm, que não deixou nenhuma machucada. Que nem a menina de Jardim Alpino que contou que foi cortado nos braços com um facão, estuprada, e mutilada na genitália, cujo laudo médico atesta que ela está sem cicatrizes, e como todas as outras supostas vítimas, virgem.

Olharemos primeiro porque a Justiça dos EUA parou de fazer condenações somente na base que a Dra. Sueli usou para condenar Zé da Pipa e seu sobrinho Willian (que ela chama de “William”) a mais de uma década de prisão.

O leitor de Catanduva deve lembrar os detalhes do caso da “rede de pedofilia”. Trataremos aqui de quatro momentos específicos: a camionete preta; a apreensão de março; o reconhecimento em Rio Preto em junho; e o micro do médico.

Múltiplas Vítimas/Múltiplas Ofensores

A dra. Sueli diz que a psicologia é uma ciência. Bem, a matéria da maior revista do ramo, Psychology Today, fala das mudanças na maneira de interrogar crianças depois do caso Michaels em Nova Jersey. O autor, que é advogado e psicólogo, destaca que

Desde então psicólogos e investigadores policiais mudaram seus métodos de interrogar crianças pequenas, e mais nenhum caso MVMO [Múltiplas Vítimas/Múltiplas Ofensores] tem aparecido nos EUA

É exatamente este tipo de caso de que se trata na caça de bruxas de Catanduva.

Na sentença, a dra. Sueli nota que o psicólogo Paulo, que encontrou sinais de abuso sexual em quase todas as 61 crianças de Jardim Alpino que examinou, tem mestrado e está fazendo doutorado. Ela deixa de notar que estes estudos avançados são em educação especial. (http://lattes.cnpq.br/6015371368541783). Ela dedica quatro páginas da sentença à ciência de psicologia, citando “Psicologia: Uma introdução ao estudo de psicologia”, “Vocabulário de Psicanálise”, “Dicionário Técnico de Psicologia”, e três livros editados mais de um século atrás.

Com todo respeito aos conhecimentos de direito da juíza, que podem ser profundos, suas citações de psicologia sugerem um conhecimento superficial da psicologia. E de psicologia Paulo tem graduação, e só. Se psicologia é mesma uma ciência, nem a Juíza de Direto nem o psicólogo do Fórum são cientistas.

As entrevistas das crianças de Jardim Alpino seguiu os padrões modernos de interrogação? Para responder precisaremos comparar as entrevistas conduzidos pelo psicologo Paulo com os diretrizes estabelecidos no caso Michaels. Lamentavelmente, enquanto a sentença é pública como em qualquer processo, as entrevistas estão sob sigilo, e talvez nem foram documentados conforme prática moderna. Pode ser que o caso não foi conduzido seguindo ciência mais diretamente relevante, mais profunda, e mais moderna, do que a das obras gerais e antigas citadas na sentença.

A camionete preta

Uma camionete preta supostamente levou as crianças para as orgias. Foi comprovado que um empresário estacionava a camionete na escola para conduzir um caso extra-conjugal: funcionários da escola sempre avistaram a camionete, até durante as férias escolares, mas nunca notaram nenhuma criança entrar. E o empresário não foi reconhecido pelas crianças.

Mas, é notório que as crianças falaram que foram levados numa camionete preta. Como que a meritíssima juíza resolve a contradição?

Da mesma maneira que ela resolve a menina com os cortes profundos que se sararam sozinhos sem deixar cicatrizes. Ela pula completamente. A camionete não aparece na sentença.

Ela decidiu também que Willian cometeu os crimes que lhe foram atribuídos durante as duas horas que seu serviço dava para almoço, e que levou umas das crianças no seu moto, para encontros com homens que não foram identificadas, num lugar que não foi identificado.

Numa cidade pequena, como não se poderia identificar este lugar e estes homens, onde até 61 crianças foram supostamente levadas, durante meses, ao luz de meio-dia? Como que é que ninguém presenciou nenhuma destas viagens?

Em Salem, pelo menos, diziam que as vôos de vassoura aconteciam a noite.

As apreensões de março

Antes da visita da CPI em março, mandados de busca e apreensão assinadas pela dra. Sueli foram cumpridos 40 policiais e 20 promotores sobre o olhar da mídia nacional, já posicionado para veicular o espetáculo.

Serviu muito bem para espalhar as acusações, e destacar Catanduva na olhar da nação, no mal sentido. Mas serviu em nada para colher evidências, pela sua ausência conspícua nesta sentença. Nem os micros, nem os cruzamento dos telefones cujo sigilo foi quebrado pela CPI, nenhum dado colhido por sessenta homens da lei e três Senadores da República tinha peso o suficiente para ser citado no julgamento da figura central da “rede”.

O reconhecimento de junho

Peso foi dado pela mídia, e pela juíza, aos reconhecimentos. Acompanhei do lado de fora o reconhecimento em São José do Rio Pardo em junho, e do que ouvi, quem mais foi reconhecido lá foi Zé da Pipa.

Neste momento, uns dos leitores devem estar prestes a abandonar este texto. Afinal, se Zé foi reconhecido, o resto é detalhes.

Antes, mais um detalhe: Zé não estava em Rio Preto aquele dia. Quem o "reconheceu" estava errado, e conseqüentemente desconfio dos outros supostas reconhecimentos, dois ou três, naquele ocasião e nos outros.

O micro do médico

A delegada Rosana da Silva Vanni foi duramente criticada por ter telefonado para o advogado do médico, em março, para dizer que ia executar uma busca na casa dele. Chegado vinte minutos depois, ela foi informada que o micro estava na oficina.

No CPI, este incidente foi agarrado como sendo como "as provas sumiram", e que “os culpados escapariam” por isso.

Sérgio Menezes

Mas vamos com calma. As supostas fotos não foram encontradas em nenhuma dos dúzias de computadores apreendidos no caso. Os abusos supostamente acontecerem durante meses, como a suposta intuito de distribuir fotos pelo internet. E elas não foram encontradas no internet.

Não foram encontrados no computador de Zé da Pipa, porque o borracheiro não tinha computador: sua câmera falava diretamente com a impressora que usava para imprimir as caras das crianças nas pipas. É nenhuma foto física ilegal nunca foi encontrada.

A suposição de que um existia uma rede de distribuir pornografia, mas que não distribuiu fotos mas mantinha uma única copia, e apesar do barulho dos caçadores se aproximando durante semanas deixou para sumir com as evidências vinte minutos antes da chegada da polícia, é absurda.

Acredito mais nos vôos de vassoura.

Mais a ser dito

Há mais a ser dito sobre esta investigação e esta sentença, e creio que será dito, que o caso de Catanduva será estudado no Brasil da mesma maneira de que o caso de Fells Acres é estudado nos Estados Unidos: um modelo de como não se faz a investigação deste tipo de acusação.

Presunção de inocência

Qualquer acusado, não importando a natureza da suposta crime, é presumido inocente. Sua culpa tem que ser provada.

Muitas das acusações e detalhes mais espetaculares que Brasil inteiro ouviu, foram cabalmente desmentidas. Muitas das acusações feitas pelas crianças foram falsas: francamente absurdas ou desmentidas pelos laudos médicos. A sentença não explica nada disso, aparentemente ecoando a auge da onda americana destes casos, quando a regra foi que tudo que criança falava que não era comprovadamente falso era verdade pura, e onde a atitude para com inconsistências foi, “Dane-se e condena-se!”

A falta total de evidência física na sentença, especialmente aquela que deveria existir, assusta, especialmente à luz dos casos americanos. Que toda a prova é fruto de entrevistas feitas por um especialista em educação especial, cujo taxa de diagnosticar abuso é “quase 100%”, perturba. Que a condenação está apoiado tal-somente nas conhecimentos de um psicologia sem formação avançada na disciplina, e os conhecimentos da área mais superficiais ainda da juíza, causa desconfiança.

Soltem os presos

Há quatro presos na suposta rede de pedofilia de Catanduva. Há os dois menores (“recolhidos à Fundação Casa”, mas dá no mesmo), e Willian. É absolutamente comprovado que os três foram vítimas de crimes. Willian foi seqüestrado e só escapou da morte devida a ação rápida da PM, que tinha os telefones da PCC grampeados. Os dois menores tiverem seus nomes veiculados na imprensa como acusados em violação da ECA, e um deles foi fisicamente atacado em frente ao Fórum, em frente a imprensa.

O caso de José Barra Nova de Mello, o "Zé da Pipa", é um pouco mais complicado. Ele confessou uns delitos. A juíza deu pouco peso a isso, condenando pelo que ele confessou e o que não confessou.

Ouvi falar desta confissão de Zé quando visitei Catanduva em junho, e voltei para casa convencido que realmente Zé tinha feito alguma coisa, mas que tudo apontava que ele agiu sozinho.

Chegando em São Paulo, fui ler sobre os processos das bruxas de Salem, e fiquei abismado ao ler os conselhos de uns sábios de 300 anos atrás, de que nestes casos não se deve acreditar nem em confissões.

Pois umas das bruxas de Salem confessaram também.

A juíza diz que “a prova é robusta”, de que “não há dúvidas quanto a veracidade”. Falaram assim em Salem, faz 300 anos, e no caso Fells Acres, também.

Os quatro devem ser soltos já, enquanto o Tribunal de Justiça julga as apelações, presumivelmente na luz da lei e não da psicologia.

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